Capitulo 2 – Um tempo para pensar





       Vamos encontrar nosso herói na igreja ao lado dos caixões de seus pais. Era a missa de exéquias ou missa dos mortos, considerada pelos cristãos católicos o ponto alto dos funerais. Pela última vez os corpos de seus pais eram conduzidos para a igreja onde, durante suas vidas, congregaram com os outros membros, participando da Ceia do Senhor, vivendo os mistérios de Cristo e crescendo na caridade cristã. Seus despojos mortais representavam tudo o que eles foram durante suas vidas. Nessa missa a comunidade rende graças a Deus por todo o bem realizado neles, evocando suas virtudes ao mesmo tempo em que a comunidade é edificada. Por eles intercede a Deus, que lhes perdoe os pecados e lhes conceda a felicidade eterna que não conseguiram aqui na terra. Essa fora a explicação dada ao filho sobre o significado daquele ato religioso. Alves ouviu sem ter escutado. Terminada a cerimônia todos se foram depois de, inutilmente, tentarem expressar seus pêsames ao único parente presente.
       Desde o momento em que entrou na igreja e sentara ao lado dos dois ataúdes, qual uma cria ao lado do corpo protetor, Alves não mais se mexeu. Sentado e olhando fixamente para um lugar indeterminado no alto. Nada nele demonstrava que estivesse vivo a não ser pelos olhos que se mantinham abertos e que, de vez em quando, piscavam. Todos atribuíam tal comportamento à dor causada pela perda, de uma só vez, do pai e da mãe. Ele estava naquela mesma posição desde que chegara. Ao final da cerimônia, só ficara o padre ali na igreja que, sentado ao seu lado, esperava numa atitude coerente de um confortador de almas - dos vivos. 
       Entretanto, era necessário que os corpos fossem levados à sua última morada e o padre tinha outros compromissos e, quem sabe, talvez outras almas a confortar. Mas foi só depois de muito insistir com aquele filho ferido e nada conseguindo, nem sequer um leve movimento ou expressão facial ou algo que demonstrasse que estava vivo, foi que o sacerdote, segurando-o pelo braço conseguiu que ele se levantasse e o féretro pode seguir para o cemitério ao lado, onde já os aguardavam algumas daquelas pessoas que na igreja estiveram. Ao ser conduzido, Alves não esboçara a menor reação e caminhava pelo salão da igreja como se ali não estivesse.
       Ao final, depois da última pá de cal, o padre ainda chegou a esboçar a intenção de levá-lo para casa, porém, não completara o gesto como se adivinhasse qual seria a reação e achou melhor deixa-lo ainda um pouco mais entregue à sua dor. Afastou-se depois de fazer o sinal da cruz. A noite caiu e Alves continuou lá.
      Na manhã seguinte os funcionários do cemitério foram encontrá-lo ao lado dos túmulos, sob uma chuva fina que caia. Estava acocorado e com os braços apertando os joelhos junto ao peito, todo seu corpo tremia. Aproximando-se, um dos funcionários tocou em seu ombro e sem receber nenhuma resposta, percebeu que ele estava inconsciente levaram-no para o hospital público mais próximo e deixaram-no lá. Tinham mais o que fazer.
       Depois de passar cinco dias em observação, durante os quais foi submetido a diversos exames clínicos, sem ter sido encontrado nada de anormal, Alves foi liberado. Seu corpo estava são. Se tivessem acompanhado a sua vida nos anos seguintes, talvez os médicos viessem a modificar o diagnóstico.
      Uma vez na rua, Alves olhou ao redor e não soube onde estava. Assim, fraco e desnorteado vagou pelas ruas em direção a lugar nenhum e acabou chegando, sem saber como, ao apartamento onde morava. Deixou-se cair numa poltrona e acabou adormecendo.
      Com o passar do tempo, embora não apresentasse qualquer sintoma neurótico, e muito menos psicótico, o fato é que Alves sentia enorme dificuldade para expor-se ao mundo, fora daquelas paredes que lhe davam segurança. Sabia que o mundo lá fora exigiria dele renúncias e constantes conflitos, experiências e improvisações penosas. Pensando e sentindo-se assim, não tardou a surgir o impulso de fugir à realidade. A vida sempre encontra possibilidades de contornar a realidade, vela-la e suprimi-la com o prazer momentâneo da satisfação fugaz que alivia, mas que também cobra um preço, que pode vir pela renúncia voluntária em viver ou o de isolar-se mentalmente. Ele se defrontava com a opção da escolha entre aceitar ou negar a realidade. Ele sabia, de maneira clara, que precisava esquivar-se dos conflitos existentes no mundo exterior. Mas como? - Era o que se perguntava.
      Ele precisava de tempo. Tempo para pensar, para colocar seus pensamentos em ordem, antes de enfrentar a luta pela sobrevivência no mundo lá fora. Sua ideia sobre o que era a vida não estava em harmonia com o que era de fato a realidade. Não podia ser assim. Precisa descobrir quem estava certo: ele ou o mundo. Este pensamento não era novo, era o mesmo que não o largava desde o momento em que recebera a notícia da morte dos pais, o mesmo que ocupava sua mente quando estava na igreja, enquanto as pessoas atribuíam seu mutismo à dor pela perda. Era ainda o mesmo que estivera com ele no cemitério. 
       Gotas de suor escorriam pelo seu rosto ao mesmo tempo em que uma onda de calor subia-lhe à cabeça e, sentindo-se subitamente fraco e sem apoio, desfaleceu no chão da cozinha junto à geladeira. Quando acordou no hospital a que fora levado por aqueles mesmos vizinhos que Alves desdenhava, ficou sabendo pela voz do médico o diagnóstico do seu mal; foi quando percebeu que o destino lhe dera o tempo de que precisava. Naquele mesmo dia, foi removido para a ala do hospital destinada aos doentes mentais.